domingo, 13 de novembro de 2016

MATÉRIA COM ALEXANDRE SALDANHA NO CORREIO BRAZILIENSE: CASOS DE BULLYING ENTRE CRIANÇAS E ADOLESCENTES SE MULTIPLICAM NAS ESCOLAS

postado no website do jornal Correio Braziliense em 13/11/2016 08:00 / atualizado em 11/11/2016 21:18
 Por: Renata Rusky /Revista
"Todo mundo já recebeu um apelido do qual não gostou na escola", argumenta aqueles que não entendem bem o que é o bullying e as conseqüências dele na vida de tantos jovens. É uma forma de minimizar ofensas graves que causam prejuízos profundos às vítimas. O bullying é a agressão física, verbal ou comportamental sem motivação, repetitiva e intencional contra uma pessoa a fim de intimidá-la e humilhá-la. Há ainda quem diga que é só uma brincadeira de criança com a qual a vítima deve saber lidar.
Esse tipo de discurso faz com que as vítimas se sintam responsáveis pelo próprio sofrimento, já que não conseguem reagir ou "levar na esportiva". O resultado são crianças e adolescentes que guardam o sofrimento para si. As pesquisas sobre bullying apontam que, na maioria das vezes, a situação opressora sequer chega ao conhecimento de pais e professores. É um sofrimento silencioso.
No ano passado, a então presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 13.185/2015, que obriga escolas a identificarem e combaterem os casos de agressão entre os alunos. Mesmo assim, em agosto deste ano, o IBGE divulgou a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (Pense), que identificou que as ocorrências de bullying aumentaram em relação a 2010. O estudo concluiu que os maiores alvos de provocação são características físicas: primeiro do corpo, depois do rosto. Estar acima do peso, usar óculos, ter espinhas — qualquer coisa vira motivo de chacota. Atualmente, com a lei de combate ao bullying, as escolas se esforçam no sentido de conversar com os alunos, mas tudo indica que isso ainda não evita a prática.
Alguns veem o aumento dos casos de forma positiva, como um sinal de que as situações estão sendo detectadas. Os especialistas, porém, são unânimes em destacar que os números ainda estão subestimados, sobretudo os referentes ao ensino particular. Para a neurocientista e educadora Katia Chedid, as escolas estão, cada dia mais, reproduzindo a competitividade do mundo real e premiando os melhores de acordo com padrões estabelecidos, o que deixa os estudantes mais agressivos. "O humano sobreviveu porque aprendeu a trabalhar junto e ter empatia. Essa onda de competitividade, de ser o umbigo do mundo, vai acabar com a gente. Quando a escola trabalha só com resultado, não favorece o trabalho colaborativo, as diferenças de aptidões. Depois, reclamam de bullying, de alunos que não se encaixam, que são excluídos", aponta.
O advogado Alexandre Saldanha, especialista em bullying e mobbing (assédio moral em ambiente de trabalho), recorre a uma ideia do filósofo francês Michel Foucault: "Quanto mais competitiva uma sociedade, mais violenta ela é". O advogado critica a legislação vigente sobre o tema. "A lei é ineficaz porque só tem caráter regulatório, não prevê nenhuma pena aos agressores. Ela equipara o bullying a todo tipo de crime, como assédio sexual, moral, destruição de patrimônio público, mas depois diz que o apenamento deve ser evitado. As leis só modificam o caráter quando têm uma sanção", argumenta. Além disso, ele ressalta o fato de a norma não prever nenhum tipo de fiscalização nas escolas. Ele próprio foi vítima desse tipo de violência quando estudante, hoje milita na causa.

Dia a dia de luta contra o bullying

Júlio (nome fictício), 15 anos, está no 6º ano de uma escola pública do DF. Começou a estudar lá este ano e foi quando os problemas começaram. Pergunte a um aluno da unidade o que é bullying e você percebe que praticamente todos sabem a resposta correta. Dizem que professores já abordaram o assunto em sala de aula. Mesmo assim, os estudantes se agridem o tempo todo, confiantes de que não serão punidos.
A primeira pessoa a implicar com Júlio acabou se tornando uma amiga. Ela o atacava verbalmente e, por vezes, tentava bater. Ele apenas se defendia, nunca revidava. A mãe de Júlio, Luciana (nome fictício), 43 anos, foi ao colégio para resolver a situação e pediu para que ele recorresse à direção sempre que algo do tipo acontecesse. E aconteceu bem mais do que poderia imaginar.
Desde o início do ano, Júlio vem sendo agredido dentro da escola. Seus algozes o golpeiam nas costas. Uma vez, atirou-se uma maçã contra ele. Foi necessário que a direção olhasse as câmeras de segurança para identificar o agressor e comprovar o ocorrido. Ele é frequentemente desacreditado. Alguns professores são mais solidários, mas, na prática, não o ajudam. Ele faz rap e, quando decidiu usar seu talento para revidar as agressões e colocar os sentimentos para fora, foi reprimido pela escola.
Ele tem transtorno de déficit de atenção, hiperatividade e dislexia, distúrbio que afeta a aptidão para leitura. Por essas dificuldades, é chamado de burro pelos colegas. Quase todo mês, a mãe tenta sensibilizar a coordenação para o caso. O filho já desistiu: "Fico constrangido. Nem na direção eu vou mais, porque não resolve. O diretor disse até que, se eu for reclamar de novo, ele vai me dar suspensão." Diante dessa ameaça, a mãe protestou novamente, sem sucesso.
Outro alvo de chacota são as espinhas no rosto de Júlio, agora mais amenas graças a um tratamento. Mesmo com a melhora, os colegas continuam implicando. Encontraram outro motivo: o protetor solar que precisa passar diariamente para evitar manchas. Dizem que é maquiagem. A mãe dele se preocupa também porque o remédio que toma para diminuir as marcas na pele deixa o paciente suscetível à depressão — uma associação perigosa para vítimas de bullying. "Eu já falei na diretoria: a gente leva nossos filhos para a escola achando que vai ter segurança e acontecem essas coisas. Se ele não está seguro lá, onde vai estar?", questiona.
A psicopedagoga que acompanha o desenvolvimento do adolescente alertou a mãe: parece que ele está desaprendendo várias aptidões que já dominava e que perdeu o interesse. "Ele fica mal em casa, reclama o tempo todo. Como ele vai ter interesse passando por isso na escola?", protesta Luciana. Por enquanto, a opção de mudar de escola não está acessível, mas, provavelmente, é o que acontecerá.

De acordo com a neuropsicóloga Sarah Sammy, especialista em bullying, o comportamento agressivo pode causar depressão, ansiedade, pânico e fobias diversas. Todos esses problemas provocam queda de rendimento. "Por conta do próprio cérebro, que está com uma disfunção de neurotransmissores, o estudante fica com uma dificuldade cognitiva maior", explica. Em um paciente que já tem problemas de aprendizagem, as consequências podem ser ainda mais severas.

Ataque virtual, dor real

No caso de Laura (nome fictício), 26 anos, engenheira, as agressões extrapolaram os limites da escola. Aos 13, ela foi também vítima do chamado cyberbullying. A rede social preferida dos brasileiros era o extinto Orkut. Nele, meninos que ela achava que eram amigos fizeram um perfil falso com fotos dela sem roupa. Ela se relacionava com um deles.

Pesquisa da Intel Security, realizada no ano passado com crianças e adolescentes de idades entre 8 e 16 anos, concluiu que 66% delas já haviam presenciado casos de agressão em mídias sociais. Cerca de 21% afirmaram que já sofreram cyberbullying; 24% já o praticaram; 14% das crianças admitiram falar mal de uma pessoa para outra; 7% marcaram pessoas em fotos vexatórias; 3% ameaçaram alguém; 3% assumiram zombar da sexualidade de outra pessoa.
Ela era novata na turma. Logo, se enturmou com os colegas e ganhou um apelido: uma sigla. Insistia para que lhe dissessem, mas nada. Reclamava, brigava, mas, ingênua, acreditava que seria algo inofensivo. Em uma pequena reunião de amigos, na casa de um deles, o pai ouviu o apelido e questionou o que significava. Tratava-se de uma sigla para ressaltar uma característica do corpo dela de forma sexual e pejorativa.
O pai foi à escola contra o que estava acontecendo. Mas o bullying não parou por aí e acabou se espalhando por toda a escola. Foi aí que veio à tona o perfil do Orkut com fotos de Laura. A maioria eram montagens, mas algumas ela havia mandado para o namorado. Laura precisaria contar à mãe. Aquilo provocou uma crise séria na família. "Minha mãe era muito rigorosa, não sabia nem que eu namorava. Ela ficou muito chateada, não sabia nem que eu já tinha beijado, então, o mundo caiu para ela. Meu pai era mais tranquilo e acho que, por isso mesmo, a reação dele foi a pior", lembra.
Foram à delegacia, retiraram Laura da escola. Passado alguns dias, decidiram que trocá-la de sala seria suficiente. Um dos meninos precisou fazer serviço comunitário. O que fez com que ela não se entregasse a uma depressão foi o fato de que era uma das melhores da turma e gostava muito de estudar. "Isso manteve minha autoestima, mas, até hoje, eu penso em como podia ter evitado. Eu acreditava em tudo o que me diziam e achava que nunca aconteceria algo do gênero", lamenta Laura.
Depois disso, o bullying passou a ser velado. "Eu via que as pessoas olhavam, davam risinhos, mas mantive a cabeça erguida", relembra. Ela tem amigos dessa época até hoje — aqueles que não se envolveram com o bullying. Algumas marcas da humilhação nunca se apagaram. "De vez em quando, eu conheço alguém e, quando ouvem meu nome e sobrenome, comentam: ah, é você?’", conta.

Na época dos assédios sofridos por Laura, não havia smartphone nem WhatsApp, e o Facebook não era tão popular no Brasil. O avanço tecnológico dos últimos anos deixou todos ainda mais vulneráveis. Na internet e no celular, mensagens com imagens e comentários maldosos se espalham com muita velocidade e tornam o bullying ainda mais cruel. A agressão se amplia e a vítima se sente acuada mesmo fora da escola.

O promotor de Justiça Lélio Calhau, autor de diversos livros sobre bullying, compara: "As agressões por meio eletrônico são uma evolução das antigas pichações em muros de colégios, casas ou até banheiros de escola. Eram feitas na calada da noite e causavam grande dor para as vítimas, além da impunidade para os seus praticantes". Segundo ele, muitas vítimas têm o ímpeto de excluírem aquilo que foi colocado na internet, o que as prejudica muito quando procuram a polícia.

Sobre falsas amizades

Catarina (nome fictício), 17 anos, é uma adolescente inteligente. Aos 13, lia Nietzsche. Sempre respeitou quem pensa diferente. Há cerca de um ano, passou a ter crises de pânico, ansiedade e depressão. Tudo consequência da atitude daqueles que considerava amigos e com quem estudava havia muitos anos. De repente, as coisas mudaram. Uma nova garota entrou na turma e, influenciado por ela, o grupo todo passou a excluir Catarina. Se iam ao cinema, não a chamavam. Alguém dava uma festa: ela não era convidada. Sequer tentaram esconder essa rejeição.
O grande problema é que a novata era filha de um casal de amigos dos pais de Catarina. Havia o mito de que elas se davam bem. Eles se conheciam havia mais de uma década. Catarina temia estragar a amizade da família se contasse pelo que estava passando. Dava alguns sinais, comentava sobre um episódio ou outro, mas não dava a dimensão exata do pesadelo que vivia. Chegou a comentar, por exemplo, que achava estranho a filha dos amigos dos pais não a seguir no Twitter.
"Não é algo que passa rápido, com antibiótico, mas hoje eu tenho consciência de que mereço ser feliz e, se não gostarem de mim, o problema é dos outros"
Quando ficaram cientes do bullying que Catarina sofria e do que ele estava causando à saúde mental da filha, ficaram arrasados. "Foi devastador. Estamos todos na terapia, agora, inclusive nossa filha mais nova, que teme passar por algo parecido. Nós não percebemos a complexidade, demoramos e temos que conviver com a culpa", lamenta o pai de Catarina, Francisco (nome fictício), 46 anos, advogado. Eles foram à escola, tentaram conversar com os pais da menina, mas nada funcionou. Ouviram que Catarina era "estranha" e "diferente". A amizade acabou.
Influenciados pela nova colega, todos os amigos de Catarina começaram a ingerir bebida alcoólica, namorar, fumar. Ela se recusava a fazer essas coisas, apesar da pressão social. E fizeram-na acreditar que ela valia menos por isso. Quando o bullying estava instaurado e Catarina começou a ter crises de ansiedade, tentou se abrir para algumas pessoas da turma. "Eu fui cega, achava que eles eram meus amigos. Depois descobri que todos estavam me chamando de doida e louca pelas costas", conta.
Catarina se sentia mal na escola, a ponto de nem conseguir entrar algumas vezes. Com um laudo psiquiátrico, a família conseguiu que ela fizesse prova em um ambiente separado da turma. Com apoio psicológico, Catarina se afastou dos abusadores que achava que eram amigos e está revertendo o quadro psicológico. "Não é algo que passa rápido, com antibiótico, mas hoje eu tenho consciência de que mereço ser feliz e, se não gostarem de mim, o problema é dos outros", garante. Na tentativa de ser aceita, ela considera que se humilhou demais e teve a autoestima destruída. "Eu me comparava, me sentia muito mal com a minha aparência. As pessoas fazem você acreditar que você é pior, que, se você não for igual a elas, não merece amor e atenção", relembra.
Um dia, ela não conseguiu entrar na sala de jeito nenhum e os pais decidiram intervir. Catarina agora está cursando o segundo semestre em uma nova escola, menor e com uma metodologia mais humanizado. "Era um colégio grande, muito focado em aprovar no vestibular. Quando o alunos são chamados por números e não se trabalha a parte humana deles, acho que casos como esse tendem a ocorrer", analisa o pai.

Foi um processo duro também para Fernanda (nome fictício), 47 anos, mãe de Catarina, que é professora. "Ensinamos desde pequena que ela devia respeitar todo mundo, independentemente das opções, da sexualidade, da classe social. É muito importante o papel dos pais no convívio social do adolescente. Temos que mostrar que cada um tem suas qualidades e seus defeitos", alerta. Segundo a neuropsicóloga Sarah Sammy, é na primeira infância, com cerca de 4 anos, que os sentimentos de empatia e solidariedade são desenvolvidos — um processo, sem dúvida, influenciado pela família.

Não foi a primeira situação de bullying vivida pela adolescente. Quando estava ainda no Ensino Fundamental 1 (2º ao 5º anos), havia um menino que a perseguia. Ele chegou a bater nela algumas vezes e a dizer que ia matá-la. Ela ficava muito assustada. Os episódios não deixaram marcas tão profundas quanto os vividos mais tarde, mas ela se irrita quando relembra o que lhe diziam. "As pessoas têm a tendência de dizer que quando um menino agride verbal ou fisicamente uma menina é porque gosta dela, que meninos são assim", revolta-se.

Diálogo aberto

Recentemente, a atriz global Priscila Fantin se abriu e contou que o filho, Romeo, de 5 anos, estava sofrendo bullying na escola. Por ter cabelos longos, perguntam se ele é menina. Priscila resolveu conversar com ele para saber como se sentia em relação a isso. Ele disse que ficava chateado. Ela explicou que ele poderia ficar à vontade para fazer o que quisesse. Ele preferiu mantê-lo comprido e disse: "É, mãe, são pessoas bobas. Não quero cortar o cabelo".
Segundo a neuropsicóloga Sarah Sammy, essa conversa com os filhos é muito importante, tanto para identificar se ele é vítima quanto para saber se é agressor. "Os pais, hoje em dia, conversam pouco, não têm nem tempo de perceber que há alguma coisa errada. A criança tem medo de conversar, medo de ser repreendida", observa. É nessas oportunidades que se pode abordar temas como respeito às diferenças.

O pior cenário
É comum as vítimas de bullying entrarem em depressão. Não são raros os casos de suicídio. Em 19 de outubro deste ano, Bethany Thompson, uma menina de 11 anos que sobreviveu a um câncer no cérebro diagnosticado aos 3, suicidou-se. Ela encontrou uma arma mantida em casa por seus pais e atirou em si mesma. Ela se curou da doença em 2008. Desde então, passou a sofrer humilhações na escola, pois o tumor a deixou com deformações no rosto e danos no sistema nervoso.

Em agosto, Daniel Fitzpatrick, 13 anos, se matou. Ele estudava na escola Holy Angels Catholic Academy, EUA, e era constantemente incomodado por seus colegas. Embora tenha se queixado na instituição, nenhuma atitude foi tomada. Após a perda, seus pais decidiram divulgar em uma página do Facebook a carta de suicídio do menino para alertar outras famílias sobre o problema. Nela, Daniel conta das brigas e de como apenas uma das funcionárias da escola deu atenção ao problema, mas não foi suficiente. "Mas eles (os agressores) continuaram, eu desisti e as professoras também não faziam nada (...). Quem acabava tendo problemas era eu", escreveu.
O pai também fez um vídeo de 18 minutos em que se abre. "A história do meu filho está aí para o mundo todo ver por quanta dor ele passou", disse. "Nenhum pai deveria ter que enterrar seu filho. Nenhuma criança deveria passar pelo que o meu filho passou." Ele condenou tanto os garotos que faziam deliberadamente bullying (todos citados na carta do menino) quanto a escola católica que se recusava a ajudá-lo.