postado no website do jornal Correio Braziliense em 13/11/2016 08:00 / atualizado em 11/11/2016 21:18
Por: Renata Rusky /Revista
"Todo
mundo já recebeu um apelido do qual não gostou na escola", argumenta
aqueles que não entendem bem o que é o bullying e as conseqüências dele na vida
de tantos jovens. É uma forma de minimizar ofensas graves que causam prejuízos
profundos às vítimas. O bullying é a agressão física, verbal ou comportamental
sem motivação, repetitiva e intencional contra uma pessoa a fim de intimidá-la
e humilhá-la. Há ainda quem diga que é só uma brincadeira de criança com a qual
a vítima deve saber lidar.
Esse
tipo de discurso faz com que as vítimas se sintam responsáveis pelo próprio
sofrimento, já que não conseguem reagir ou "levar na esportiva". O
resultado são crianças e adolescentes que guardam o sofrimento para si. As
pesquisas sobre bullying apontam que, na maioria das vezes, a situação
opressora sequer chega ao conhecimento de pais e professores. É um sofrimento
silencioso.
No
ano passado, a então presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 13.185/2015,
que obriga escolas a identificarem e combaterem os casos de agressão entre os
alunos. Mesmo assim, em agosto deste ano, o IBGE divulgou a Pesquisa Nacional
de Saúde Escolar (Pense), que identificou que as ocorrências de bullying
aumentaram em relação a 2010. O estudo concluiu que os maiores alvos de
provocação são características físicas: primeiro do corpo, depois do rosto.
Estar acima do peso, usar óculos, ter espinhas — qualquer coisa vira motivo de
chacota. Atualmente, com a lei de combate ao bullying, as escolas se esforçam
no sentido de conversar com os alunos, mas tudo indica que isso ainda não evita
a prática.
Alguns
veem o aumento dos casos de forma positiva, como um sinal de que as situações
estão sendo detectadas. Os especialistas, porém, são unânimes em destacar que
os números ainda estão subestimados, sobretudo os referentes ao ensino
particular. Para a neurocientista e educadora Katia Chedid, as escolas estão,
cada dia mais, reproduzindo a competitividade do mundo real e premiando os
melhores de acordo com padrões estabelecidos, o que deixa os estudantes mais
agressivos. "O humano sobreviveu porque aprendeu a trabalhar junto e ter
empatia. Essa onda de competitividade, de ser o umbigo do mundo, vai acabar com
a gente. Quando a escola trabalha só com resultado, não favorece o trabalho
colaborativo, as diferenças de aptidões. Depois, reclamam de bullying, de
alunos que não se encaixam, que são excluídos", aponta.
O
advogado Alexandre Saldanha, especialista em bullying e mobbing (assédio
moral em ambiente de trabalho), recorre a uma ideia do filósofo francês Michel
Foucault: "Quanto mais competitiva uma sociedade, mais violenta ela
é". O advogado critica a legislação vigente sobre o tema. "A lei é
ineficaz porque só tem caráter regulatório, não prevê nenhuma pena aos
agressores. Ela equipara o bullying a todo tipo de crime, como assédio sexual,
moral, destruição de patrimônio público, mas depois diz que o apenamento deve
ser evitado. As leis só modificam o caráter quando têm uma sanção",
argumenta. Além disso, ele ressalta o fato de a norma não prever nenhum tipo de
fiscalização nas escolas. Ele próprio foi vítima desse tipo de violência quando
estudante, hoje milita na causa.
Dia a dia de luta
contra o bullying
Júlio
(nome fictício), 15 anos, está no 6º ano de uma escola pública do DF. Começou a
estudar lá este ano e foi quando os problemas começaram. Pergunte a um aluno da
unidade o que é bullying e você percebe que praticamente todos sabem a resposta
correta. Dizem que professores já abordaram o assunto em sala de aula. Mesmo
assim, os estudantes se agridem o tempo todo, confiantes de que não serão
punidos.
A
primeira pessoa a implicar com Júlio acabou se tornando uma amiga. Ela o
atacava verbalmente e, por vezes, tentava bater. Ele apenas se defendia, nunca
revidava. A mãe de Júlio, Luciana (nome fictício), 43 anos, foi ao colégio para
resolver a situação e pediu para que ele recorresse à direção sempre que algo
do tipo acontecesse. E aconteceu bem mais do que poderia imaginar.
Desde
o início do ano, Júlio vem sendo agredido dentro da escola. Seus algozes o
golpeiam nas costas. Uma vez, atirou-se uma maçã contra ele. Foi necessário que
a direção olhasse as câmeras de segurança para identificar o agressor e
comprovar o ocorrido. Ele é frequentemente desacreditado. Alguns professores
são mais solidários, mas, na prática, não o ajudam. Ele faz rap e, quando
decidiu usar seu talento para revidar as agressões e colocar os sentimentos
para fora, foi reprimido pela escola.
Ele
tem transtorno de déficit de atenção, hiperatividade e dislexia, distúrbio que
afeta a aptidão para leitura. Por essas dificuldades, é chamado de burro pelos
colegas. Quase todo mês, a mãe tenta sensibilizar a coordenação para o caso. O
filho já desistiu: "Fico constrangido. Nem na direção eu vou mais, porque
não resolve. O diretor disse até que, se eu for reclamar de novo, ele vai me
dar suspensão." Diante dessa ameaça, a mãe protestou novamente, sem
sucesso.
Outro
alvo de chacota são as espinhas no rosto de Júlio, agora mais amenas graças a
um tratamento. Mesmo com a melhora, os colegas continuam implicando.
Encontraram outro motivo: o protetor solar que precisa passar diariamente para
evitar manchas. Dizem que é maquiagem. A mãe dele se preocupa também porque o
remédio que toma para diminuir as marcas na pele deixa o paciente suscetível à
depressão — uma associação perigosa para vítimas de bullying. "Eu já falei
na diretoria: a gente leva nossos filhos para a escola achando que vai ter
segurança e acontecem essas coisas. Se ele não está seguro lá, onde vai
estar?", questiona.
A
psicopedagoga que acompanha o desenvolvimento do adolescente alertou a mãe:
parece que ele está desaprendendo várias aptidões que já dominava e que perdeu
o interesse. "Ele fica mal em casa, reclama o tempo todo. Como ele vai ter
interesse passando por isso na escola?", protesta Luciana. Por enquanto, a
opção de mudar de escola não está acessível, mas, provavelmente, é o que
acontecerá.
De
acordo com a neuropsicóloga Sarah Sammy, especialista em bullying, o
comportamento agressivo pode causar depressão, ansiedade, pânico e fobias
diversas. Todos esses problemas provocam queda de rendimento. "Por conta
do próprio cérebro, que está com uma disfunção de neurotransmissores, o
estudante fica com uma dificuldade cognitiva maior", explica. Em um
paciente que já tem problemas de aprendizagem, as consequências podem ser ainda
mais severas.
Ataque virtual, dor
real
No
caso de Laura (nome fictício), 26 anos, engenheira, as agressões extrapolaram
os limites da escola. Aos 13, ela foi também vítima do chamado cyberbullying. A
rede social preferida dos brasileiros era o extinto Orkut. Nele, meninos que
ela achava que eram amigos fizeram um perfil falso com fotos dela sem roupa.
Ela se relacionava com um deles.
Pesquisa
da Intel Security, realizada no ano passado com crianças e adolescentes de
idades entre 8 e 16 anos, concluiu que 66% delas já haviam presenciado casos de
agressão em mídias sociais. Cerca de 21% afirmaram que já sofreram
cyberbullying; 24% já o praticaram; 14% das crianças admitiram falar mal de uma
pessoa para outra; 7% marcaram pessoas em fotos vexatórias; 3% ameaçaram
alguém; 3% assumiram zombar da sexualidade de outra pessoa.
Ela
era novata na turma. Logo, se enturmou com os colegas e ganhou um apelido: uma
sigla. Insistia para que lhe dissessem, mas nada. Reclamava, brigava, mas,
ingênua, acreditava que seria algo inofensivo. Em uma pequena reunião de
amigos, na casa de um deles, o pai ouviu o apelido e questionou o que
significava. Tratava-se de uma sigla para ressaltar uma característica do corpo
dela de forma sexual e pejorativa.
O
pai foi à escola contra o que estava acontecendo. Mas o bullying não parou por
aí e acabou se espalhando por toda a escola. Foi aí que veio à tona o perfil do
Orkut com fotos de Laura. A maioria eram montagens, mas algumas ela havia
mandado para o namorado. Laura precisaria contar à mãe. Aquilo provocou uma
crise séria na família. "Minha mãe era muito rigorosa, não sabia nem que
eu namorava. Ela ficou muito chateada, não sabia nem que eu já tinha beijado,
então, o mundo caiu para ela. Meu pai era mais tranquilo e acho que, por isso mesmo,
a reação dele foi a pior", lembra.
Foram
à delegacia, retiraram Laura da escola. Passado alguns dias, decidiram que
trocá-la de sala seria suficiente. Um dos meninos precisou fazer serviço
comunitário. O que fez com que ela não se entregasse a uma depressão foi o fato
de que era uma das melhores da turma e gostava muito de estudar. "Isso
manteve minha autoestima, mas, até hoje, eu penso em como podia ter evitado. Eu
acreditava em tudo o que me diziam e achava que nunca aconteceria algo do
gênero", lamenta Laura.
Depois
disso, o bullying passou a ser velado. "Eu via que as pessoas olhavam,
davam risinhos, mas mantive a cabeça erguida", relembra. Ela tem amigos
dessa época até hoje — aqueles que não se envolveram com o bullying. Algumas
marcas da humilhação nunca se apagaram. "De vez em quando, eu conheço
alguém e, quando ouvem meu nome e sobrenome, comentam: ah, é você?’",
conta.
Na
época dos assédios sofridos por Laura, não havia smartphone nem WhatsApp, e o
Facebook não era tão popular no Brasil. O avanço tecnológico dos últimos anos
deixou todos ainda mais vulneráveis. Na internet e no celular, mensagens com
imagens e comentários maldosos se espalham com muita velocidade e tornam o
bullying ainda mais cruel. A agressão se amplia e a vítima se sente acuada mesmo
fora da escola.
O promotor de Justiça Lélio Calhau, autor de diversos livros sobre
bullying, compara: "As agressões por meio eletrônico são uma evolução das
antigas pichações em muros de colégios, casas ou até banheiros de escola. Eram
feitas na calada da noite e causavam grande dor para as vítimas, além da
impunidade para os seus praticantes". Segundo ele, muitas vítimas têm o
ímpeto de excluírem aquilo que foi colocado na internet, o que as prejudica
muito quando procuram a polícia.
Sobre falsas amizades
Catarina
(nome fictício), 17 anos, é uma adolescente inteligente. Aos 13, lia Nietzsche.
Sempre respeitou quem pensa diferente. Há cerca de um ano, passou a ter crises
de pânico, ansiedade e depressão. Tudo consequência da atitude daqueles que
considerava amigos e com quem estudava havia muitos anos. De repente, as coisas
mudaram. Uma nova garota entrou na turma e, influenciado por ela, o grupo todo
passou a excluir Catarina. Se iam ao cinema, não a chamavam. Alguém dava uma
festa: ela não era convidada. Sequer tentaram esconder essa rejeição.
O
grande problema é que a novata era filha de um casal de amigos dos pais de
Catarina. Havia o mito de que elas se davam bem. Eles se conheciam havia mais
de uma década. Catarina temia estragar a amizade da família se contasse pelo
que estava passando. Dava alguns sinais, comentava sobre um episódio ou outro,
mas não dava a dimensão exata do pesadelo que vivia. Chegou a comentar, por
exemplo, que achava estranho a filha dos amigos dos pais não a seguir no
Twitter.
"Não
é algo que passa rápido, com antibiótico, mas hoje eu tenho consciência de que
mereço ser feliz e, se não gostarem de mim, o problema é dos outros"
Quando
ficaram cientes do bullying que Catarina sofria e do que ele estava causando à
saúde mental da filha, ficaram arrasados. "Foi devastador. Estamos todos
na terapia, agora, inclusive nossa filha mais nova, que teme passar por algo
parecido. Nós não percebemos a complexidade, demoramos e temos que conviver com
a culpa", lamenta o pai de Catarina, Francisco (nome fictício), 46 anos,
advogado. Eles foram à escola, tentaram conversar com os pais da menina, mas
nada funcionou. Ouviram que Catarina era "estranha" e
"diferente". A amizade acabou.
Influenciados
pela nova colega, todos os amigos de Catarina começaram a ingerir bebida
alcoólica, namorar, fumar. Ela se recusava a fazer essas coisas, apesar da
pressão social. E fizeram-na acreditar que ela valia menos por isso. Quando o
bullying estava instaurado e Catarina começou a ter crises de ansiedade, tentou
se abrir para algumas pessoas da turma. "Eu fui cega, achava que eles eram
meus amigos. Depois descobri que todos estavam me chamando de doida e louca pelas
costas", conta.
Catarina
se sentia mal na escola, a ponto de nem conseguir entrar algumas vezes. Com um
laudo psiquiátrico, a família conseguiu que ela fizesse prova em um ambiente
separado da turma. Com apoio psicológico, Catarina se afastou dos abusadores
que achava que eram amigos e está revertendo o quadro psicológico. "Não é
algo que passa rápido, com antibiótico, mas hoje eu tenho consciência de que
mereço ser feliz e, se não gostarem de mim, o problema é dos outros",
garante. Na tentativa de ser aceita, ela considera que se humilhou demais e
teve a autoestima destruída. "Eu me comparava, me sentia muito mal com a
minha aparência. As pessoas fazem você acreditar que você é pior, que, se você
não for igual a elas, não merece amor e atenção", relembra.
Um
dia, ela não conseguiu entrar na sala de jeito nenhum e os pais decidiram
intervir. Catarina agora está cursando o segundo semestre em uma nova escola,
menor e com uma metodologia mais humanizado. "Era um colégio grande, muito
focado em aprovar no vestibular. Quando o alunos são chamados por números e não
se trabalha a parte humana deles, acho que casos como esse tendem a
ocorrer", analisa o pai.
Foi
um processo duro também para Fernanda (nome fictício), 47 anos, mãe de
Catarina, que é professora. "Ensinamos desde pequena que ela devia
respeitar todo mundo, independentemente das opções, da sexualidade, da classe
social. É muito importante o papel dos pais no convívio social do adolescente.
Temos que mostrar que cada um tem suas qualidades e seus defeitos",
alerta. Segundo a neuropsicóloga Sarah Sammy, é na primeira infância, com cerca
de 4 anos, que os sentimentos de empatia e solidariedade são desenvolvidos — um
processo, sem dúvida, influenciado pela família.
Não
foi a primeira situação de bullying vivida pela adolescente. Quando estava
ainda no Ensino Fundamental 1 (2º ao 5º anos), havia um menino que a perseguia.
Ele chegou a bater nela algumas vezes e a dizer que ia matá-la. Ela ficava
muito assustada. Os episódios não deixaram marcas tão profundas quanto os
vividos mais tarde, mas ela se irrita quando relembra o que lhe diziam.
"As pessoas têm a tendência de dizer que quando um menino agride verbal ou
fisicamente uma menina é porque gosta dela, que meninos são assim",
revolta-se.
Diálogo aberto
Recentemente,
a atriz global Priscila Fantin se abriu e contou que o filho, Romeo, de 5 anos,
estava sofrendo bullying na escola. Por ter cabelos longos, perguntam se ele é
menina. Priscila resolveu conversar com ele para saber como se sentia em
relação a isso. Ele disse que ficava chateado. Ela explicou que ele poderia
ficar à vontade para fazer o que quisesse. Ele preferiu mantê-lo comprido e
disse: "É, mãe, são pessoas bobas. Não quero cortar o cabelo".
Segundo
a neuropsicóloga Sarah Sammy, essa conversa com os filhos é muito importante,
tanto para identificar se ele é vítima quanto para saber se é agressor.
"Os pais, hoje em dia, conversam pouco, não têm nem tempo de perceber que
há alguma coisa errada. A criança tem medo de conversar, medo de ser
repreendida", observa. É nessas oportunidades que se pode abordar temas
como respeito às diferenças.
O
pior cenário
É
comum as vítimas de bullying entrarem em depressão. Não são raros os casos de
suicídio. Em 19 de outubro deste ano, Bethany Thompson, uma menina de 11 anos
que sobreviveu a um câncer no cérebro diagnosticado aos 3, suicidou-se. Ela
encontrou uma arma mantida em casa por seus pais e atirou em si mesma. Ela se
curou da doença em 2008. Desde então, passou a sofrer humilhações na escola,
pois o tumor a deixou com deformações no rosto e danos no sistema nervoso.
Em
agosto, Daniel Fitzpatrick, 13 anos, se matou. Ele estudava na escola Holy
Angels Catholic Academy, EUA, e era constantemente incomodado por seus colegas.
Embora tenha se queixado na instituição, nenhuma atitude foi tomada. Após a
perda, seus pais decidiram divulgar em uma página do Facebook a carta de
suicídio do menino para alertar outras famílias sobre o problema. Nela, Daniel
conta das brigas e de como apenas uma das funcionárias da escola deu atenção ao
problema, mas não foi suficiente. "Mas eles (os agressores) continuaram,
eu desisti e as professoras também não faziam nada (...). Quem acabava tendo
problemas era eu", escreveu.
O
pai também fez um vídeo de 18 minutos em que se abre. "A história do meu
filho está aí para o mundo todo ver por quanta dor ele passou", disse.
"Nenhum pai deveria ter que enterrar seu filho. Nenhuma criança deveria
passar pelo que o meu filho passou." Ele condenou tanto os garotos que
faziam deliberadamente bullying (todos citados na carta do menino) quanto a escola
católica que se recusava a ajudá-lo.
Fonte: Jornal Correio Braziliense